sexta-feira, 26 de junho de 2015

Dias azuis I

Quis o acaso que tivesse sangue árabe a correr-me nas veias. A ele devo provavelmente o gosto pelo calor e pelos dias de verão, a preferência pelas ervas aromáticas em detrimento dos molhos, a assimilação fácil dos sotaques do sul em vez da dicção mais politicamente correcta da capital. Há alguns dias atrás disseram-me que pensavam que eu era alentejana ou algarvia. Assim fiquei a saber que, para além do coração árabe, transporto também expressões próprias do sul e nunca me tinha dado conta. Vou ao mercado em busca de tomilho e dizem-me que não têm, apenas carqueja e poejo. E eu trago carqueja e poejo. Não sei que vai ficar bem na carne, mas lembro-me que a minha avó tinha sempre carqueja e poejo em casa. Dou-me igualmente conta que há coisas que mudaram. As velhotas já não se sentam à soleira ao fim do dia a ver quem passa e a maioria das casas aqui da rua está hoje abandonada. Passo por elas e ainda me lembro dos nomes de quem lá viveu. A casa no Monte Costa está agora completamente envolta em silvas e abelhas. Já não consigo lá entrar. Ainda assim vou espreita-la a amiúde, numa espécie de peregrinação que só eu entendo. O resto fica guardado na minha memória. Talvez um dia o meu filho herde também o gosto por esta herança imaterial, por este património familiar que não voltará a acontecer. Ou não. Mas enquanto aqui estamos dou por mim a contar-lhe histórias que sei que ainda não entende. Tenho consciência disso, mas sei que alguma coisa ele irá guardar. Nem que seja o cheiro a carqueja. Ou a lembrança da temperatura da água do mar. Ou do calor tórrido que corre por este serro abaixo e nos queima a pele ao chegar. Um dia ele saberá por que razão a mãe retorna sempre a um ou dois sítios perdidos no meio da serra, por que insiste em regressar aqui onde os dias são azuis, mesmo em pleno Inverno. Aqui sinto-me em casa.

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